domingo, 10 de abril de 2011
As três pessoas da Santíssima Trindade
* José Luiz de Carvalho
Na pacata Trindade, sertão nordestino, a população vivia em profundo estado de fé nos santos e na igreja católica. Missa aos domingos, muita movimentação nos festejos do santo padroeiro, novenas e quermesses. Tudo normal, coisas do cotidiano. Vida boa, quase abestalhada, onde quase nada acontecia. Em meio a muita gente importante, juiz, promotor, delegado, vereadores e coronel fazendeiro, o padre era também autoridade, gozava de todas as honras, regalias e respeito da sociedade trindadense.
A praça da Matriz era o ponto de encontro de todos nos finais de tarde, até da chamada turma do pé inchado, meia dúzia de pingunços, que viviam da branquinha serrana. Era época dos festejos, acabava de chegar um jovem padre formado no convento de Olinda. Padre Manoel Genuíno Maciel, era um tipo branco, magro e alto, de olhos amarelos, cabelos pretos e crespos, de boa família da capital do mangue. Empossado na paróquia, não vinha agradando a todos, notadamente ao pessoal da periferia, com sermões firmes sempre criticava a cachaçada e a prostituição. Falava de condenação ao inferno e até excomunhão de católicos infiéis.
Certa vez, reunidos na Zona Livre, cabaré dos mais humildes da região, daqueles que após o serviço, o sujeito só tem para se lavar, uma garrafa de água, sabão de barra e uma toalha, feita de saco de algodão, esses de embalar açúcar. Os membros do clube do pé inchado apoiados pelas raparigas resolveram dar um troco ao padre. Queriam mostrar que também eram filhos de Deus e conheciam “a palavra”. Zé Canário por ser um rapaz inteligente e ter estudado até a terceira série do ginásio em Caruaru, foi o escolhido para a grande missão religiosa. Passou na casa de Margarida Rosa, velha zeladora da igreja, filha de Maria e pediu emprestado uma bíblia. Passou três dias sumido, só estudando. Queria fazer bonito representando os seus amigos.
Era domingo, último dia do festejo. Zé Canário, saiu de casa todo empolgado, vestindo um desbotado terno azul, calça de mescla serrana e camisa de chita amarela com flores multicores, um pé do sapato outro num velha chinela alpercata feita em couro cru, a surrada bíblia debaixo do braço. Passou antes no bar da Socorro, próximo à praça, tomou uma dose de cachaça, derramou o resto dizendo que era a do santo, deu uma cuspida no pé do balcão dizendo que era para perturbar o cão e foi-se todo elegante, mancando, “vinte e nove, trinta, vinte e nove, trinta”. Na porta da igreja sua turma esperava ansiosa o grande momento da confissão. Apostavam tudo na inteligência de Zé.
Padre Manuel, começou a confissão. Fila longa, muita gente velha em busca da salvação, após uma vida mundana como era o caso de Severino Pafúncio, pistoleiro de aluguel que foi convertido ao cristianismo pelo padre Raimundo Souza Carvalho, velho pároco de Trindade que havia se aposentado e ido embora para sua terra, Parnaíba, no norte do Piauí. Chega a vez de Zé Canário. Aí homem caiu as carnes. Começou a tremer, nó na língua, suando frio. Criou coragem. Sabia que não podia decepcionar seus amigos que ainda estava lá fora aguardando. Foi logo se ajoelhando, mãos postas em oração. De dentro do confessionário o padre com voz de desconfiança, pois já conhecia bem aquele tipo e parte da história, contada por Margarida Rosa, foi logo sabatinando o homem. Quem são as três pessoas da Santíssima Trindade? Silêncio, longo silêncio...Zé pensa em seus amigos da Zona Livre. Afinal de contas, são para ele as pessoas mais importantes da cidade. A resposta quase não sai ... “Nego Chico, Nego Novo e cumpade Bastião”.
* Membro da Academia Parnaibana de Letras e do IHAL
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